Eram
duas e meia da manhã quando Frederico e João saíram do Legendary, o bar junto à
Câmara onde invariavelmente se detinham a beber longas horas. Em frente, o torreão altaneiro do edifício de Adães Bermudes vigiava, e
apenas um sonolento vigilante dormitava no átrio da entrada.
Respirando
o ar quente do inesperado outono, cálido e atípico, começaram a andar na direcção
do edifício, a construção era elegante, construída em cima do cemitério de S. Sebastião, dizia-se, alguns asseveravam mesmo ouvir os mortos
uivando em noites luarentas, em protesto pelo desaforo de erigir em local
sagrado.
Segundo
o velho Porfírio, fiscal reformado a morar na Ilha das Cobras e não longe do
Legendary, nos anos trinta o filho de um anterior Presidente da Câmara fora surpreendido
pela noiva com uma amante no primeiro andar do torreão,
e com uma faca de cozinha terá posto termo à vida de ambos. Só que até hoje,
nunca os corpos foram encontrados, tudo mais não passando que coisas do
feitiço de Sintra, como, incrédulo, afirmava o Frederico, pouco dado a
histórias de fantasmas, não obstante durante o dia as impingisse aos turistas entre
flashes e selfies com telemóvel. O calor da noite e os vapores do álcool
levaram-nos a afoitar-se junto ao torreão, donde uma luz trémula parecia vir do
primeiro andar, hoje ocupado por serviços, o João sabia haver nessa sala um
velho cofre onde em tempos se guardavam as receitas da Câmara, mas há muito não
era aberto, nem se conhecia quem tivesse a chave, usado apenas para pendurar a
mochila do Josué, o fotógrafo municipal. Temerários, e movidos pela última bebida, propuseram-se escalar o
torreão, ante o olhar circunspecto dum gato que deambulava à porta da tasca do
Manel. O vigilante dormia sobre o jornal, quem sabe o tal
cofre contivesse ainda algumas notas esquecidas, ou até documentos de interesse sobre a história de Sintra, tão do agrado do João.
Curiosamente,
a luz trémula e fraca parecia aumentar de intensidade ao aproximar do edifício, não o néon das luzes da
sala, mas uma espécie de vela, ou candeeiro a petróleo. Na ânsia de subir pela parede lateral,
Frederico aleijou o nariz pontiagudo, ficando a sangrar um pouco, enquanto, irritante, o telemóvel vibrava no bolso das calças. Alcandorando-se à janela, do lado
de fora tudo parecia normal, sem sinal de candeeiro ou candelabro, mas curiosamente
o velho cofre estava entreaberto, não deixando contudo ver para o seu interior.
Entraram. A sala era uma ampla divisão, com um pé direito grande e arejado, sobre as secretárias
silenciosas dos três funcionários que ali trabalhavam durante o dia, papeis e
textos sobre a vida interna do burgo, fotos da Vila, recentes, espalhavam-se na mesa do
fotógrafo. Ao longe, à porta do Legendary os últimos copos eram sorvidos por
tipos já cambaleantes, o Rui, professor de desenho gesticulava e ensaiava
poemas a Sintra, entre dois goles e abraços a um amigo a quem tratava no
plural. Frederico foi atraído pelo cofre cinzento e entreaberto,quem sabe um mini bar retemperador.
Sobre uma
secretária, João deu de caras com um recorte de jornal dos anos trinta,
relatando o desaparecimento do filho do presidente e duma moça da Vila e até
hoje envolto em mistério, já o Faias e o Parracho tinham
abordado o assunto nos jornais, mas sempre sem conclusões palpáveis.
Curioso,
Frederico aproximou-se do cofre com a porta encostada, e antes que lhe
tocasse, uma mão esquálida vinda do interior agarrou-o pelo pescoço, logo
desaparecendo com ele por um buraco interior. Em pânico, João ainda reconheceu o rosto
macilento do filho do antigo presidente, que aliás o jornal da secretária
retratava, desaparecendo no interior do cofre com o atarantado Frederico, que
nem tempo teve de gritar e chamar por ajuda.
Precipitando-se
para o cofre, donde exalava um fétido cheiro a enxofre, ainda mal descortinava
o buraco fundo por onde Frederico e o vulto desapareceram, quando por trás uma mulher, vestida de branco, lhe piscou o olho, logo o empurrando para o interior, e entrando a seguir, fechando o cofre por
dentro, e levando-o para uma cripta na base do torreão, onde os mortos de S.
Sebastião se deleitavam num festim, e Frederico, já com a pele esbranquiçada e
olhos baços se divertia, bebendo cidra com um esqueleto de mulher. Também João, atónito,
sentiu o corpo a transformar-se, com os tecidos a encolher e a pele a ficar
roxa, e depois branca. Olhou nos olhos a mulher que o levara, era a amante do filho do
presidente, ambos desaparecidos no torreão setenta anos antes, e de cujo
paradeiro ninguém mais ouvira. Foi a sua última visão, antes de, como Frederico,
ficar cataléptico e dormente.
Na
sala do cofre, de novo fechado, nada deixara antever a presença dos dois
amigos, apenas a janela entreaberta que a Diana, que também lá trabalhava, no
dia seguinte atribuiu a esquecimento do Josué. No Legendary,
a Joana, neta da noiva do filho do presidente, que entretanto casou com um
industrial de Montelavar, sorria, enigmática, aviando as últimas cervejas e
olhando para o torreão, de novo sepulcral e às escuras.
Ninguém
mais voltou a ver os dois amigos, consta-se que partiram para um Erasmus em
Barcelona, sem se despedir de ninguém. Coisas de Sintra...
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