quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O cofre do torreão





Eram duas e meia da manhã quando Frederico e João saíram do Legendary, o bar junto à Câmara onde invariavelmente se detinham a beber longas horas. Em frente, o torreão altaneiro do edifício de Adães Bermudes vigiava, e apenas um sonolento vigilante dormitava no átrio da entrada.

Respirando o ar quente do inesperado outono, cálido e atípico, começaram a andar na direcção do edifício, a construção era elegante, construída em cima do cemitério de S. Sebastião, dizia-se, alguns asseveravam mesmo ouvir os mortos uivando em noites luarentas, em protesto pelo desaforo de erigir em local sagrado.

Segundo o velho Porfírio, fiscal reformado a morar na Ilha das Cobras e não longe do Legendary, nos anos trinta o filho de um anterior Presidente da Câmara fora surpreendido pela noiva com uma amante no primeiro andar do torreão, e com uma faca de cozinha terá posto termo à vida de ambos. Só que até hoje, nunca os corpos foram encontrados, tudo mais não passando que coisas do feitiço de Sintra, como, incrédulo, afirmava o Frederico, pouco dado a histórias de fantasmas, não obstante durante o dia as impingisse aos turistas entre flashes e selfies com telemóvel. O calor da noite e os vapores do álcool levaram-nos a afoitar-se junto ao torreão, donde uma luz trémula parecia vir do primeiro andar, hoje ocupado por serviços, o João sabia haver nessa sala um velho cofre onde em tempos se guardavam as receitas da Câmara, mas há muito não era aberto, nem se conhecia quem tivesse a chave, usado apenas para pendurar a mochila do Josué, o fotógrafo municipal. Temerários, e movidos pela última bebida, propuseram-se escalar o torreão, ante o olhar circunspecto dum gato que deambulava à porta da tasca do Manel. O vigilante dormia sobre o jornal, quem sabe o tal cofre contivesse ainda algumas notas esquecidas, ou até documentos de interesse sobre a história de Sintra, tão do agrado do João.

Curiosamente, a luz trémula e fraca parecia aumentar de intensidade ao aproximar do edifício, não o néon das luzes da sala, mas uma espécie de vela, ou candeeiro a petróleo. Na ânsia de subir pela parede lateral, Frederico aleijou o nariz pontiagudo, ficando a sangrar um pouco, enquanto, irritante, o telemóvel vibrava no bolso das calças. Alcandorando-se à janela, do lado de fora tudo parecia normal, sem sinal de candeeiro ou candelabro, mas curiosamente o velho cofre estava entreaberto, não deixando contudo ver para o seu interior.

Entraram. A sala era uma ampla divisão, com um pé direito grande e arejado, sobre as secretárias silenciosas dos três funcionários que ali trabalhavam durante o dia, papeis e textos sobre a vida interna do burgo, fotos da Vila, recentes, espalhavam-se na mesa do fotógrafo. Ao longe, à porta do Legendary os últimos copos eram sorvidos por tipos já cambaleantes, o Rui, professor de desenho gesticulava e ensaiava poemas a Sintra, entre dois goles e abraços a um amigo a quem tratava no plural. Frederico foi atraído pelo cofre cinzento e entreaberto,quem sabe um mini bar retemperador.

Sobre uma secretária, João deu de caras com um recorte de jornal dos anos trinta, relatando o desaparecimento do filho do presidente e duma moça da Vila e até hoje envolto em mistério, já o Faias e o Parracho tinham abordado o assunto nos jornais, mas sempre sem conclusões palpáveis.

Curioso, Frederico aproximou-se do cofre com a porta encostada, e antes que lhe tocasse, uma mão esquálida vinda do interior agarrou-o pelo pescoço, logo desaparecendo com ele por um buraco interior. Em pânico, João ainda reconheceu o rosto macilento do filho do antigo presidente, que aliás o jornal da secretária retratava, desaparecendo no interior do cofre com o atarantado Frederico, que nem tempo teve de gritar e chamar por ajuda.

Precipitando-se para o cofre, donde exalava um fétido cheiro a enxofre, ainda mal descortinava o buraco fundo por onde Frederico e o vulto desapareceram, quando por trás uma mulher, vestida de branco, lhe piscou o olho, logo o empurrando para o interior, e entrando a seguir, fechando o cofre por dentro, e levando-o para uma cripta na base do torreão, onde os mortos de S. Sebastião se deleitavam num festim, e Frederico, já com a pele esbranquiçada e olhos baços se divertia, bebendo cidra com um esqueleto de mulher. Também João, atónito, sentiu o corpo a transformar-se, com os tecidos a encolher e a pele a ficar roxa, e depois branca. Olhou nos olhos a mulher que o levara, era a amante do filho do presidente, ambos desaparecidos no torreão setenta anos antes, e de cujo paradeiro ninguém mais ouvira. Foi a sua última visão, antes de, como Frederico, ficar cataléptico e dormente.

Na sala do cofre, de novo fechado, nada deixara antever a presença dos dois amigos, apenas a janela entreaberta que a Diana, que também lá trabalhava, no dia seguinte atribuiu a esquecimento do Josué. No Legendary, a Joana, neta da noiva do filho do presidente, que entretanto casou com um industrial de Montelavar, sorria, enigmática, aviando as últimas cervejas e olhando para o torreão, de novo sepulcral e às escuras.

Ninguém mais voltou a ver os dois amigos, consta-se que partiram para um Erasmus em Barcelona, sem se despedir de ninguém. Coisas de Sintra...

Sem comentários:

Enviar um comentário