sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A Jornada Lusitana do Cavaleiro D. Quixote


Havia uma semana que deambulavam pelo Alentejo, Rocinante, acusando a idade, mal se arrastava pela planície quente, enquanto, teimoso, o burrito de Sancho se negava a andar. Passado o Tejo em barcaça, e pernoitando em Bolembre, aldeola junto a Sintra, numa estalagem pobre e chã viu o nobre Dom Quixote poderosa mansão de gente da mais fina fidalguia, e nos saloios que os acolhiam nobres de farta fazenda, quiçá grandes de Espanha. A taberneira estranhou os modos do castelhano, com a desconchavada armadura, safava-se Sancho, chamou manjar dos deuses a um prato de torresmos, enquanto Quixote fazia vénias à Aldegundes, com um robusto buço, no qual viu um sinal de nobreza, herança dos antepassados.


No dia seguinte, refrescadas as montadas, partiram para Sintra, terra da qual o cavaleiro da triste figura lera em crónicas de Fernão Lopes, e onde amiúde se deslocava El-Rey Filipe, agora senhor desses reinos, em visita ao eremitério dos Capuchos, que um dia comparara ao imponente Escorial.

As verdes encostas lembraram-lhe a Bretanha, descortinado no alto o ameaçador castelo de algum infiel califa, puxou da lança, ordenando trote ao Rocinante, e pedindo a Sancho que tivesse atenção, entrava-se em reino de Mafoma. Apesar de conquistado pelos guardiães do Templo, todo o cuidado era pouco, podendo a cada momento surgir um mouro infame, a quem havia que trespassar. Sancho sossegava, mais não eram que campónios na faina das hortas, belas maçãs vira nas terras de Almargem, e farta parecia a vila ao taberneiro arvorado em escudeiro.
Surgindo um saloio num jumento, saudou em tom cortês, destapando a tina de barbeiro que lhe servia de elmo, bem como aos habitantes do burgo. Já perto do Chão de Oliva, viu surgir uma colareja, Constança Sapa de seu nome, que vendo os forasteiros logo lhes quis vender deliciosas queijadas. Desconfiado, Quixote mandou que sumisse, mezinhas de bruxa lhe pareceram. Sancho ainda quis provar uma, mas temendo a fúria do amo, calou, deixando a velha praguejando contra os castelhanos que desdenhavam dos seus doces.
À vista das chaminés do Paço, um grito escapou do homem de La Mancha: ali estavam as masmorras do gigante Formentor, sobre quem lera já em obras do português Castanheda, que tanto vivia no mar como nas terras de incautas gentes. Com o Rocinante relinchando, agitado, Quixote deu ordem de investir:
-Ataquemos, fiel Sancho! Frágeis donzelas sofrem cativas nas masmorras deste paço! Por Deus e Santiago! À minha ordem, honra e glória!.

Já o corajoso libertador investia campo fora, quando assustado o burrito de Sancho lhe atalhou a marcha, evitando o pior:

-Senhor Quixote, Virgem Maria, travai o trote, que aquele é o paço d’el rey! Vede o estandarte! Não afrontemos quem é por nós, pois pode a ira de Don Filipe perder-vos em terras de Portugal!
-Sai da frente, leal Sancho, deixa que trespasse o monstro, já azeite a ferver cai de caldeirões pelas muralhas! Vinde, títeres infiéis! À justiça do meu ferro, mostrengo desalmado!

A custo, o pançudo escudeiro travou o ataque, por ele ao menos se detivesse em sua ira. Acalmado mas não convencido, o Rocinante deteve a marcha, já soldados da guarda chegavam a trote a ver quem eram os temerários forasteiros. O capitão da guarnição, Don Roboredo y Gárzon, vendo o patético cavaleiro de lança em riste, deu-lhe ordem de prisão, mandando-o desarmar e acompanhá-lo ao paço, onde se apuraria o motivo de tão desafiadora atitude, e a soldo de quem atuava. Dom Quixote exigiu falar com alguém da sua estirpe, o alcaide ou o estribeiro do rei, e, sacudindo os soldados que o detinham, fez menção de sacar da espada, quando de imediato o atiraram ao chão, como reles salteador:
-Largai-me, infames! Eu sou Don Quixote de La Mancha, Grande de Espanha e da Andaluzia. Levai-me a vosso amo ou um certeiro degredo em Ceuta castigará esta ousadia!
Achando o forasteiro perturbado, Don Roboredo ordenou que o largassem, em surdina, Sancho inteirou-o das febres de seu amo, velho lavrador que pensava ser um predestinado cavaleiro andante. Tido enfim por inofensivo, foi largado, sujo e poeirento, dessedentando-se na Fonte da Sabuga. Sintra, definitivamente, era terra hostil. Partindo pela estrada que levava a Lisboa, lançou um olhar ao castelo mouro, vociferando:

-Por Deus e Santiago, Sancho, em verdade, é esta terra de desalmadas gentes! Sangue turbado de Mafoma! Toma nota do que te digo: breve voltarei, e não me chame Don Quixote, da nobre casa de La Mancha, ou estas chaminés do Demo não tardarão a tombar! Trarei um exército de bravos, e logo o estandarte de Santiago flutuará nestas vis muralhas!

Regressando pelo cálido Alentejo aos livros de cavalaria, levou o Cavaleiro da Triste Figura os meses seguintes na soalheira casa de La Mancha, planeando a conquista do insurreto bastião, que, milenar, lá continuou vendo reis e princesas, e cavaleiros até, mas dos verdadeiros e de estirpe. Não fossem as atenções de Dulcineia del Toboso, e teria Sintra hoje uma estátua equestre do seu intrépido conquistador, no terreiro onde chaminés inimigas albergaram os títeres do Formentor.

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